CRÔNICA: OUSADIA

Crônica

Ousadia

A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao saltar, a contrariedade se anunciou:

– A sua passagem já está paga – disse o motorista.

– Paga por quem?

– Esse cavalheiro aí.

E apontou um mulato bem-vestido que acabara de deixar o ônibus, e aguardava com um sorriso junto à calçada.

– É algum engano, não conheço esse homem. Faça o favor de receber.

– Mas já está paga…

– Faça o favor de receber! – insistiu ela, estendendo o dinheiro e falando bem alto para que o homem ouvisse:

– Já disse que não conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me esperando, o senhor não está vendo?
Vamos, faço questão que o senhor receba minha passagem.

O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo: melhor para ele, ganhava duas vezes.

A moça saltou do ônibus e passou fuzilando de indignação pelo homem. Foi seguindo pela rua, sem olhar para ele.

Se olhasse, veria que ele a seguia, meio ressabiado, a alguns passos.

Somente quando dobrou à direita para entrar no edifício onde morava, arriscou uma espiada: lá vinha ele! Correu para o apartamento, que era no térreo, pôs-se a bater, aflita:

– Abre! Abre aí!

A empregada veio abrir e ela irrompeu pela sala, contando aos pais atônitos, em termos confusos, a sua aventura:

– Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até aqui!

De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o homem ainda estava lá fora, no saguão. Protegida pela presença dos pais, ousou enfrentá-lo:

– Olha ele ali! É ele, venham ver! Ainda está ali, o sem vergonha. Mas que ousadia!

Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou as mãos à cabeça:

– Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo.

– Marcelo? Que Marcelo? – a moça se voltou, surpreendida.

– Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece ele, foi quem pintou o apartamento.

A moça só faltou morrer de vergonha:

– É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não reconheci! Você me desculpe, Marcelo, por favor.

No saguão, Marcelo torcia as mãos, encabulado:

– A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia…

SABINO, Fernando. Ousadia. In: Para gostar de ler – Crônicas. São Paulo: Ática, 1981.

Atividades

1. Com relação ao gênero e a sua estruturação, responda: (D6, D7)
a) Qual é o gênero textual?
b) Qual é o tipo discursivo?
c) Qual é o domínio discursivo desse gênero?
d) Qual é a sua finalidade/função sócio-comunicativa/para que serve/objetivo?
e) Quais são as principais características?

2. Qual é o tema e o assunto do texto? (D1)

3. Onde se passa a história? (D2)

4. O que Marcelo considerou, no final, que foi muita ousadia? (D3)

5. Na frase “Abre! Abre aí!” (l. 29) o uso da exclamação sugere o que? (D21)

6. Qual é o conflito gerador do enredo? (D19)

7. Por que a moça se envergonha no final do texto? (D12)

8. Nos trechos abaixo coloque O para opinião e F para fato: (D10)
a) ( ) “A sua passagem já está paga.” (l.2)
b) ( ) “E apontou um mulato bem-vestido…” (l.5)
c) ( ) “Sujeito atrevido, ainda fica ali me esperando…” (l.11)
d) ( ) “Se olhasse, veria que ele a seguia…” (l.16)
e) ( ) “…foi quem pintou o apartamento.” (l.12)

Crônica

O que é:

Trata-se de um texto híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo, a crônica é o resultado da
visão pessoal, subjetiva, do cronista diante de um fato qualquer, colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano. Quase sempre explora o humor; às vezes, diz as coisas mais sérias por meio de um aparente conversa fiada; outras vezes, despretensiosamente, faz poesia da coisa mais banal e insignificante.

Registrando o circunstancial do nosso cotidiano mais simples, acrescentando, aqui e ali, fortes doses de humor, sensibilidade, ironia, crítica e poesia, o cronista, com graça e leveza, proporciona ao leitor uma visão mais abrangente, que vai além do fato; mostra-lhe, de outros ângulos, os sinais de vida que
diariamente deixamos escapar da nossa observação.

ATIVIDADE DE ESCRITA: Listar os temas do dia a dia, escolher um e elaborar uma crônica.

A crônica: fazendo história

A crônica é um dos mais antigos gêneros jornalísticos. A princípio, com o nome de folhetim,
designava um artigo de rodapé escrito a propósito de assuntos do dia – políticos, sociais, artísticos, literários.

Aos poucos foi se tornando um texto mais curto e se afastando da finalidade de se informar e comentar, substituída pela intenção de apresentar os fatos do cotidiano de forma artística e pessoal. Sua linguagem tornou-se mais poética, ao mesmo tempo em que ganhou certa gratuidade, em razão da ausência de vínculos com interesses práticos e com as informações veiculadas nas demais partes de um jornal.

De seu surgimento aos dias atuais, a crônica ganhou prestígio entre nó e pode-se até dizer que
constitui um gênero brasileiro, tal a naturalidade e originalidade com que aqui se desenvolveu.

Características

. Apresenta uma visão pessoal do assunto escolhido.
. Há elementos narrativos básicos.
. O texto é curto e leve.
. Diverte e/ou promove uma reflexão sobre o assunto.

Deu branco
“De notícia e não notícias faz-se a crônica”, afirmava o poeta Carlos Drummond de Andrade. E
quando nenhum assunto acorre à mente do cronista? O jeito é transformar em assunto a falta de assunto…

Muitos cronistas já se queixaram em suas crônicas da falta de assunto, do famoso “branco” que os acomete, certamente consequência do fato de a maioria das crônicas ser uma obrigação semanal que seus autores devem cumprir e, portanto, não podem deixar para escrever em momento de inspiração. A arte do cronista, então, passa a consistir em fazer do seu problema uma solução: dando “branco”, escreve-se sobre o “branco”.

Adaptado do PIP – Anos finais -SRE Curvelo


Clarice Menezes

Bacharel em Comunicação Social, esp. em Publicidade e Propaganda pela UGF. Graduada e licenciada em Letras pela UERJ com especialização lato sensu em Teoria e História da Arte, Fundamentos e Práticas Artísticas. É professora da Rede Municipal e Estadual do Rio de Janeiro atuando no ensino fundamental e médio. Autora do blog Memória de Trabalho.

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